segunda-feira, outubro 29, 2007

Parte 1 - "Vamos às folhas?"

A história que se segue é real. No entanto, não há dia exacto para ela. Deu-se há umas boas dezenas de anos. Vamos então recordar o tempo das nossas avós. Hoje em dia já não é o que era:

"-Vamos às folhas? - dizia ela numa voz que se sabia não haver hipótese de recusa...

- Vamos! Eu também quero ir... - respondia a rapariguinha que apesar do medo da brincadeira da madrinha que de vez em quando lá atirava uma ameaça de mentirinha só para fazê-la correr uma pisca: "vem aí o toiro!!", para depois rir-se à farta, com aquele rosto miúdo e iluminado pela vontade de ajudar nas tarefas preparatórias para o maior evento da freguesia.

E lá iam a caminho das folhas de jarroca (o nome correcto é conteira ou Roca-de-Velha), subindo canadas, vira daqui e vira dacolá, mas nem o cansaço as fazia voltar sem antes adocicarem a boca com os doces espigos e o seu sumo suave e tão saboroso. Era o prémio por terem conseguido reunir uma boa quantidade de folhas de um lindo verde, liso e brilhante, que já parecia ter mesmo o formato ideal, dispostas duas a duas, para lhe colocarem em cima um bolo de massa doce, pronto a ir para o forno de lenha e fazer as delícias dos da casa, dos parentes e os de fora da freguesia até.

A velhinha, a mestra lá da casa, a mulher que tinha por missão fazer a melhor massa sovada das redondezas e, quem sabe, de mais longe ainda, costumava juntar as duas folhas com muito cuidado e carinho, não fossem elas estragar-se, de forma à massa não escapulir na volta de ir para o forno, em cima de um pá de madeira, própria para aquele tipo de massa, e acompanhada pela griseta (peça de metal em que se enfia a torcida das lâmpadas), que iluminava a entrada do forno e ajudava à pá seguir até onde o bolo devia poisar para depois de cozido ficar no ponto que só aquela velhinha sabia."

Aqui fez-se uma paragem na história. A saudade fez encadear a palavra que não saía tão afoita como antes. Avistava-se uma lágrima a querer aflorar no rosto que se quedou a olhar o horizonte, como que à procura da tal "velhinha". Dali a pouco a história continuava:

"Após o cheiro doce do campo vinha-se para o cheiro doce do lar. Endireitavam, então, muito bem as folhas, cortando as extremidades e procediam à união de duas a duas, guardando-as empilhadas até à hora de se lhe colocarem o bolo de massa sovada já pronto a ir para o forno.

Antes disso, havia ainda muito a fazer. Tinha que se reformar o "crescente", fazer o fermento, tomar da presa, e misturar os ingredientes da massa, todos muito bem medidos com os recipientes próprios da altura - a quarta, o meio-alqueire ou outro. Já se sabia que 1 quarta equivalia a 2 quilos de farinha e portanto, era esta a peça que manuseavam melhor.

A primeira coisa a ter em conta era o "crescente", porque sem crescente e sem fermento não se faz a massa sovada e sem mão para o tempero dela também não. Assim, não é qualquer pessoa que se mete a fazer massa sovada da boa, daquela que se via apregoar em frente à Igreja, pela Santíssima Trindade no Bodo e que se via nas mesas pela Festa da Paróquia, e os folares pela Páscoa e as escaldadas pelo Pão-por-Deus. Pode-se dizer que massa sovada como a daquela Velhinha era muito raro ver ou talvez só se tenha visto parecida na mão da neta mais nova. Aquela fazia uma massa que ficou na memória de muita gente que a visitava quando o cheiro já se percebia antes mesmo de entrarem portas para dentro como que no faro da massa doce da Tia. Ninguém se ia embora sem levar um bolo, dos melhores, num tom suave e belo, sem defeito, porque ao sair do forno, a mão da Velhinha de cabelos alvos de neve e olhos da cor do céu, aprontava-se logo com a "boneca de manteiga" (pedaço de pano de linho com um bocado de manteiga formando um cabecinha que fazia lembrar o fantasma da manteiga) que ao passar com muita delicadeza na massa acabada de sair do forno de lenha, lhe dava o tom brilhante e duradouro, castanho claro, ficando assim untada sem nunca passar do ponto porque ela gostava era da massa loira (e de bom sôlo), não fossem depois falar mal daquela sua arte.

Se acontecia algum bolo ficar fora do ponto que ela gostava, para quem a ajudava era uma sorte das grandes, porque servia para prova inicial pois esse bolo era cortado e distribuído por bocas desejosas por aquele manjar dos deuses. - Hummm!! Que delícia! Que massa apetitosa e quentinha. Quero mais 'vó!..."

Nova pausa. Desta vez o silêncio comandou. Nem uma palavra se adivinhava no horizonte, de novo. Aquela linha estava tão dura como uma pedra e nem sinal de lágrimas. A neta da velhinha está viva e um pouco afastada por motivos que nem interessam agora para a receita do "Crescente".

Antes de se prosseguir na história ainda deu tempo de um novo ânimo para recordar como se fazia a manteiga antigamente:


"Antes de haver a manteiga empacotada com o símbolo regional terceirense, fazia-se a manteiga caseira aproveitando toda a nata do leite que as vacas bem nutridas iam dando, à custa daqueles belos prados verdes. Reservavam a nata e depois colocavam numa lata, que servia também para colocar o leite da ordenha, e com um pano dobrado no colo a servir de protecção às pancadas ritmadas que tinham de dar com a lata até a nata ficar em ponto desejado. Ao fim de algumas horas nesta penitência saudável tinham manteiga para a massa ou qualquer outra arte culinária. Hoje, já vem tudo em pacotes a jeito de utilizar."

(Continua)

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